sábado, 20 de março de 2010

DIFERENTES VERTENTES DO DESENVOLVIMENTO HUMANO

A Psicologia do Desenvolvimento é uma das áreas de estudo e de intervenção da
psicologia e pretende, em termos gerais, responder à questão «O que é que muda em nós ao
longo da vida?». Deste modo, a psicologia do desenvolvimento tem por objectivo estudar a
génese e a evolução dos processos psicológicos ao longo do tempo, quer dizer, as mudanças
que acontecem com a idade.
Um bebé sorri para a mãe, uma criança de três anos compreende uma conversa, uma
outra, de seis anos, brinca com os amigos e inventa as regras de um jogo. As crianças de oito e dez anos são capazes de memorizar a mesma lista de palavras, um adolescente consegue
resolver uma equação matemática, uma pessoa de trinta anos faz opções sobre a sua carreira
profissional, outra, de quarenta e dois resolve um problema emocional e outra, ainda, de
sessenta decide que vai reformar-se. Estes são exemplos de comportamentos que
observamos no nosso quotidiano e que nos dizem o que as pessoas são ou não são capazes
de fazer. Considera-se que o desenvolvimento é o processo contínuo de mudança psíquica
que ocorre ao longo da vida. Um processo contínuo, global e dotado de grande flexibilidade.
Na Psicologia do Desenvolvimento estuda-se a forma como nos desenvolvemos ao
longo do ciclo de vida, da fecundação até à morte. Durante muito tempo considerou-se que o
desenvolvimento terminava na idade adulta. O período da infância, em especial, atraía a
atenção dos investigadores e daqui surgiram muitas teorias a explicar o que é que acontece
durante esta fase de vida. Isto explica-se pela razão de, na infância, ocorrerem mudanças
muito visíveis e acentuadas.
Hoje em dia, a idade adulta e a velhice são alvos de tanta curiosidade como a infância
ou a adolescência. As pessoas não param de se desenvolver quando atingem a idade adulta.
Progressivamente, foi-se abandonando a ideia de imutabilidade dos adultos. As alterações
das condições de vida, especialmente nas sociedades ocidentais, reforçaram este facto.
Pensemos, por exemplo, que os jovens são inseridos cada vez mais tarde no mundo do
trabalho, na precariedade do estatuto profissional, no aumento de divórcios, nos casamentos
posteriores. Quer dizer que surgem continuamente novas exigências de adaptação que
requerem o desempenho de novos papéis sociais. Mudamos mesmo depois de crescidos e
diferentes fases da vida implicam diferentes exigências biológicas, sociais e também
psíquicas que é importante conhecer. Por isso, muitas investigações se debruçam sobre o
modo como respondemos a elas.
Também as ideias sobre os mais velhos têm mudado, distanciando-se de concepções
associadas à degradação. Factores como o aumento do tempo de vida, a deterioração de
algumas capacidades e a evolução de outras, o entrar na reforma quando se está apto para
um conjunto de tarefas e de relações permitem às pessoas manter capacidades de adaptação
a novas situações e estarem abertas à mudança e à vida. Por exemplo, a densidade de
neurónios corticais começa a diminuir desde o nascimento, tal como a acuidade perceptiva
que começamos a perder muito cedo. Por tudo isto é fácil perceber que nos desenvolvemos
ao longo da nossa existência. O corpo e as capacidades físicas evoluem, a vida afectiva
transforma-se, o estatuto social muda.
A Psicologia do Desenvolvimento centra-se nas mudanças ao longo da vida. Aqui,
mudança significa alterações quantitativas e qualitativas, do gatinhar ao andar, do balbuciar
ao falar, do raciocínio ilógico ao lógico, da infância à adolescência, à maturidade, à velhice, do
nascimento à morte. Por isso, parece importante perceber como é que o comportamento e os
processos mentais mudam ao longo da vida, tendo em conta factores físicos e biológicos,
cognitivos, afectivos e sociais que influenciam as diversas fases de crescimento e de
desenvolvimento. Como estes factores não actuam isoladamente, surgem questões
relativamente à interacção entre eles e ao papel que cada um desempenha no processo
global. Também os contextos, por exemplo o contexto histórico, socioeconómico, cultural ou
étnico, em que as pessoas se desenvolvem permitem compreender melhor a sua evolução.
Ao longo da sua história de mais de cem anos, têm surgido na psicologia do
desenvolvimento uma série de modelos teóricos que explicam de modo diferente o
fenómeno da mudança e o papel destes factores no processo de desenvolvimento. Cada
modelo tem explicações próprias e enfatiza diferentes vertentes do desenvolvimento.
Embora algumas destas explicações possam parecer contraditórias, esta diversidade de
ideias enriquece a compreensão que temos do ser humano e do seu desenvolvimento.
Historicamente, estas diferentes concepções têm-se organizado muitas vezes em
dicotomias, ou seja, em ideias que se situam em posições extremas. Outras vezes tem-se
tentado ir para além delas e integrá-las permitindo uma visão mais alargada. Essas
dicotomias normalmente estão na base daquilo que as pessoas pensam sobre o
comportamento humano. Podemos referir as mais importantes através de uma série de
questões. Será o desenvolvimento humano consequência de factores hereditários ou de
factores adquiridos? O desenvolvimento é um processo contínuo ou haverá rupturas que
impliquem descontinuidade? O desenvolvimento dependerá mais de factores internos da
pessoa ou de factores externos? O desenvolvimento é um processo que implica a
estabilidade da pessoa ou mudança contínua?
Há muitos séculos que se coloca a questão da origem das características dos seres
humanos, do que os leva a ser e comportar-se de determinada forma. Muitos investigadores
e pensadores têm procurado responder a uma questão que pode variar de enunciado. O que
é que nos torna humanos? O que é que nos leva a comportarmo-nos de determinadas
formas? Como se explica que nos comportemos de modo diferente uns dos outros? Para
responder a estas perguntas, diferentes autores colocaram-se nos pólos extremos da
dicotomia: o pólo do inato, da hereditariedade, da natureza, e o pólo do adquirido, do meio,
da educação.
O Inato e o Adquirido
O pólo inato tem estado ligado a formas de ver o ser humano e o seu
desenvolvimento como sendo determinado pelas suas características biológicas e corporais.
Os defensores desta perspectiva defendem que há uma natureza em nós, no nosso corpo, nos
nossos genes (ou até na nossa evolução filogenética), que é responsável pelo que somos e
pela forma como nos comportamos.
O comportamento humano seria, fundamentalmente, determinado pela
hereditariedade. Seria o património genético herdado dos progenitores que definiria a
constituição orgânica e psíquica dos indivíduos, bem como o seu comportamento,
desenvolvimento, personalidade. Essas características seriam, portanto, inatas, isto é,
nasciam connosco. A maturação encarregar-se-ia de orientar o crescimento biológico do
corpo e o desenvolvimento segundo padrões definidos por determinados programas
genéticos.
No pólo adquirido, relativo à educação, à influência do meio ambiente, encontramos
perspectivas que defendem que são as nossas experiências sociais e culturais que
determinam a nossa forma de ser. Nós seríamos produto do que aprendemos e os ambientes
em que vivemos modelariam o nosso desenvolvimento. Os autores que defendem este
princípio procuram ligações entre determinados ambientes e os percursos de vida. A forma
como somos educados e aquilo que aprendemos são responsáveis pelo que somos e pelos
comportamentos que manifestamos.
Nas explicações que propõem, os autores favorecem as variáveis do ambiente (o que
está presente no contexto, o conjunto de estímulos) e os conceitos de adquirido (o que passa
a fazer parte do repertório de comportamentos de uma pessoa, o que é aprendido em
determinada situação) e de socialização (enquanto conjunto de experiências e
aprendizagens, vividas socialmente, por exemplo com a família).
Alguns autores procuram integrar elementos desta dicotomia, como é o caso de
Piaget que valoriza quer os factores maturativos, quer os factores socioculturais. Piaget
defende uma posição que não é nem inatista, nem empirista: a pessoa tem um papel activo
no seu desenvolvimento. Neste processo intervêm factores biológicos e factores relativos ao
meio, às acções sobre o meio e à transmissão social. A sua concepção interaccionista e
construtivista visa uma síntese possível entre os dois pólos.
A Continuidade e a Descontinuidade
Cada um de nós está em permanente reconstrução. À medida que vivemos,
que crescemos, que vamos agindo, que nos relacionamos com as outras pessoas, vamo-nos
transformando e vamo-nos tornando quem somos, encontrando as nossas formas de pensar,
de sentir e de agir.
A dicotomia entre continuidade e descontinuidade relaciona-se com a forma
como muitos autores vêm e explicam as transformações que as pessoas vão sentindo. As
perspectivas mais centradas na continuidade e as mais centradas na descontinuidade
produzem diferentes compreensões sobre as mudanças que ocorrem na vida de cada um.
Na sua definição mais elementar, a noção de continuidade diz respeito a algo
que continua a existir de modo semelhante ao que existia antes. Nesta perspectiva, a
mudança é gradual. A noção de descontinuidade aponta o aparecimento de algo que não
existia antes, para uma mudança abrupta. A questão da continuidade/descontinuidade tem
marcado a psicologia do desenvolvimento e diferentes modelos que explicam as mudanças
e transformações ao longo do tempo.
Muitos modelos mais centrados na continuidade tendem a ver as mudanças
em determinados comportamentos como resultado de uma mudança quantitativa, isto é,
como uma mudança que ocorre através da acumulação de associações a estímulos. Mais
respostas condicionadas ou mais competências adquiridas aumentam o repertório de
comportamentos observados e modelados e, portanto, das diversas formas de agir.
Para os autores que defendem a descontinuidade as acções e as relações
conduzem ao surgimento de possibilidades de agir, sentir e pensar de modos novos e
diferentes. A existência destas maneiras novas de compreender e de agir no mundo, de criar
sentido para o que vai acontecer, torna necessária uma reorganização que resolva os
conflitos entre as compreensões mais recentes e as mais antigas. Quando esta reorganização
conduz a uma lógica global de organização de formas de pensar, de agir e de sentir nova,
ocorrendo uma transição para o estádio de desenvolvimento seguinte.
As teorias mais centradas na descontinuidade tendem a ver as
transformações como envolvendo momentos de reorganização. As novas formas de
organização apresentam-se como qualitativamente diferentes das anteriores. As mudanças
não são vistas como quantitativas, mas como qualitativas. Em vez de haver acumulação de
respostas, há diferenciação e novidade nestas. Há sempre um modo de organização global
que não existia antes e que emerge.
Para explicar o desenvolvimento humano tanto a continuidade como a
descontinuidade são importantes. Mudamos e vamo-nos transformando tanto de forma
contínua como de forma descontínua. Experimentamos mudanças que se devem à integração
de novos conhecimentos, de novas respostas, de novos comportamentos e competências,
mudanças que se explicam pela continuidade e pela alteração quantitativa dos nossos modos
de pensar e de agir. Mas isso não explica como é que, em determinados momentos, as
transformações vão para além do mais ou do mesmo. A diferenciação, as novas respostas e
capacidades são devidas a reorganizações mais ou menos globais, são mudanças qualitativas
que modificam a organização subjacente aos nossos modos de ser e de nos desenvolvermos.
O Interno e o Externo
Ao longo da história da psicologia o interior tem aparecido ligado ao corpo e
à sua biologia, isto é, ao que se passa dentro de nós. Por outro lado, relacionamos interior às
cognições, às emoções e aos pensamentos que foram encarados, durante muito tempo, como
algo que se passa dentro de nós, frequentemente como algo que se passa no interior da
nossa cabeça.
Ao exterior associam-se o contexto e a situação, as relações de socialização,
as influências da cultura. O exterior tem sido relacionado com os estímulos que nos afectam,
com os acontecimentos, com as condições em que vivemos. Pensar que o que somos, em
determinado momento, pode ser explicado apenas pelo que se passa no nosso interior é não
compreender que o interior e o exterior existem num permanente diálogo, na interacção que
a cada momento nós vivemos com o mundo que nos rodeia. Não só o nosso corpo dá forma
ao nosso estar numa situação, como os contextos moldam o nosso corpo e o que se passa
dentro dele. Basta pensarmos na plasticidade do nosso cérebro.
O que nós pensamos está presente nas situações: reflecte-se, transporta-se
para a forma como sentimos e nos relacionamos com as coisas e com o mundo. Mudamos os
contextos onde existimos através do modo como existimos. Mas está também lá, e também
em nós, o que os outros pensam, as palavras que usam, os sentidos que certas acções
adquirem, o que em certas situações aprendemos a fazer… sempre na relação em que o que
sentimos e o que pensamos, o que sabemos e o modo como agimos estão dentro e fora de
nós em permanente reconstrução.
A Estabilidade e a Mudança
Ao falarmos da continuidade e da descontinuidade referimo-nos
frequentemente à mudança, à transformação, quer quantitativa, quer qualitativa que
acontece em nós ao longo do tempo. As pessoas mudam, os seus corpos mudam, as suas
formas de ser e de estar mudam ao longo do tempo. Sabemos que não fomos sempre aquilo
que somos hoje. Ao nosso lado, vemos outras pessoas a mudar. Reconhecemos que a
mudança faz parte de nós próprios.
Nem só a mudança explica o desenvolvimento que vamos experimentando.
Todos sabemos que há coisas que nunca mudam. Há pessoas que conhecemos bem e, sobre
elas, prevemos como se comportam em determinadas situações, o que tendem a pensar
sobre si e sobre o mundo. Podemos até deparar-nos com momentos em que nos parece
estranha a forma como agem por não ser típica delas. Portanto, reconhecemos estabilidade
nos modos de ser.
Como nos ajuda a questão da estabilidade/mudança a compreender o
comportamento e desenvolvimento humanos? Se pensarmos em nós agora, há um ano atrás
ou há dez anos, o que parece mais importante? O que permaneceu ou o que mudou? A
dicotomia entre estabilidade e mudança refere-se ao modo como diferentes autores foram
explicando o desenvolvimento como um processo que tem origem em elementos de
estabilidade ou de mudança.
Os autores que mais valorizaram o pólo da mudança foram aqueles que
abordaram, sobretudo, o comportamento das crianças e dos adolescentes. Foram
influenciados nas suas concepções gerais pelo que se passa nestas fases da vida humana em
que predomina a transformação e a mudança. Parecia que enquanto a mudança marcava a
infância e a adolescência, a estabilidade era a principal característica do adulto. Mas
sabemos hoje que a principal característica dos seres humanos é a plasticidade que os
acompanha ao longo da vida e que de modo algum termina na adolescência. Tudo quanto
sabemos acerca da plasticidade biológica, do modo como os seres humanos interagem uns
com os outros, como reorganizam as suas vidas, as suas concepções do mundo, a sua própria
identidade reforçam a ideia de que a mudança nos acompanha ao longo da vida.
É evidente que estas afirmações não são incompatíveis com a afirmação da
estabilidade. Reconhecemo-nos e somos reconhecidos mesmo quando desempenhamos
diferentes papéis, quando nos movemos em contextos diferentes, com o passar do tempo.
Esta ideia conduz-nos ao conceito de identidade. A identidade representa uma continuidade,
uma fidelidade, uma consistência e coerência no modo de ser e estar. Corresponde às
características pessoais, persistentes, dotadas de coerência interna. Contudo, não podemos
associar a estas características um carácter estático. A identidade constrói-se ao longo da
vida e é um processo dinâmico que envolve necessariamente mudança. Os processos
biológicos, os factores sociais e as experiências pessoais são os motores das mudanças
inerentes a todos os processos de adaptação, portanto, de vida.
Adaptado de M. Monteiro e P. Ferreira, Ser Humano, 2.ª Parte, 2006

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